Introdução

Na parte 5 confirmamos que o desenvolvimento cidadão é um “rascunho de requisitos”, não um sistema de produção. Então por que essa função original se distorce e começa a gerar passivos negativos em série?

A resposta não está em falhas técnicas. A raiz está no desalinhamento de perspectivas entre a alta gestão, a linha de frente, a TI e a gerência média.


Série completa


Quatro papéis, quatro perspectivas

Alta gestão: deveria ser guardiã do longo prazo

A alta gestão, em teoria, deveria manter o horizonte mais longo e desenhar como a organização deve ser em dez ou cem anos. Mas na prática, a pressão de resultados trimestrais para os acionistas e a competição de mercado a prende na miragem de ganhos imediatos. O brilho da “implementação rápida” e da “visualização” trazidos por RPA e desenvolvimento cidadão seduz, e decisões passam a privilegiar avançar a qualquer custo em vez de cuidar da governança.

Linha de frente: se funciona, está valendo

A linha de frente vive sob a carga das tarefas diárias. Se um fluxo automatizado aliviar o trabalho de amanhã, isso basta; “como preservar no longo prazo” fica fora do radar. Ferramentas no-code ou sistemas montados em Excel, desde que funcionem no dia seguinte, são automaticamente vistos como corretos.

Departamento de TI: fala sobre o longo prazo, mas não acompanha o ritmo

Paradoxalmente, quem costuma apontar os riscos de longo prazo não é o conselho, e sim a TI. A área alerta sobre segurança, arquitetura e sustentabilidade operacional, repetindo que “desse jeito vai colapsar”.

Mas a TI também tem fraquezas. Ela convive com carência crônica de recursos e com uma explosão de habilidades que não consegue absorver. Ou seja, “consegue enxergar o longo prazo, mas não tem braço para acompanhar a velocidade do negócio”. Por isso acaba rotulada como quem “só reclama e não entrega”, e suas mensagens perdem força.

Gerência média: do amortecedor ao acelerador do risco

A gerência média deveria servir de ponte entre direção e linha de frente. Contudo, a cobrança por “mostrar resultados neste trimestre” pesa, e esse grupo acaba carregando nas costas a corrida por ganhos rápidos em vez de coordenar com a TI para preservar a governança. Essa camada que cai de “vítima espremida” para “multiplicadora de passivos negativos” é o ponto mais perigoso.


Como o desalinhamento gera fracassos estruturais

  • A alta gestão se tranquiliza com uma “demo funcionando” e esquece o longo prazo.
  • A linha de frente espreme a ferramenta porque “resolve agora”.
  • A TI grita que “assim vai quebrar lá na frente”, mas não tem capacidade de execução e ninguém escuta.
  • A gerência média prioriza “o resultado deste trimestre” e abandona a mediação.

Esse desencontro faz o desenvolvimento cidadão brilhar por um instante e logo despencar para o passivo negativo. A trajetória do Kami Excel é, na verdade, a reedição desse problema estrutural chamado desalinhamento de perspectivas.


Governança é alinhar as perspectivas

O que precisamos não é apenas de “regras técnicas” ou “escolha de ferramentas”. Governança é, antes de tudo, integrar perspectivas que vivem em horizontes de tempo distintos.

  • A alta gestão precisa de indicadores que mostrem a coexistência de ganhos rápidos com proteção de longo prazo.
  • A linha de frente precisa de mecanismos que preservem a velocidade sem desmontar as regras.
  • A TI precisa levar não só alertas, mas caminhos viáveis para implementar.
  • A gerência média precisa resistir ao elogio fácil do curto prazo e cumprir o papel de articuladora.

O desenvolvimento cidadão é um rascunho. E um rascunho só tem valor quando existe uma forma de entregá-lo para quem faz a versão final. Garantir essa passagem é alinhar perspectivas — é governança.


Encerramento

Quem define o futuro do desenvolvimento cidadão não são as plataformas nem a IA, mas a estrutura de decisão da organização. Se deixarmos o desalinhamento correr solto, repetiremos a história do Kami Excel. Mas se integrarmos as quatro perspectivas e construirmos o mecanismo que leva o rascunho à versão final, o desenvolvimento cidadão pode se tornar uma arma para o futuro.


Próximo (final): Legados continuarão a nascer; ainda assim, domestique-os — visão de futuro do desenvolvimento cidadão 7/7