Introdução

Na parte 3 confirmamos que as bases atuais do desenvolvimento cidadão — RPA e plataformas no-code/low-code — escondem um risco de dívida ainda maior do que o Kami Excel. Nessa mesma linha, o que muda com a chegada da IA generativa?

A IA generativa consegue analisar ativos de software existentes e auxiliar na migração ou no redesenho. Mas os ativos que nunca foram escritos como código — as caixas-pretas de no-code e RPA — continuam praticamente impossíveis de salvar, mesmo com IA.

Em outras palavras, a dívida negativa que sobreviver ao futuro tende a se concentrar naquilo que “ficou fora do código”.


Série completa


Forças da IA generativa──“descongelar” ativos de código

Migrar código legado sempre exigiu esforço humano gigantesco. Milhões de linhas escritas em COBOL ou VB raramente têm documentação e dependem de especialistas para serem decifradas.

Aqui a IA generativa abre uma brecha.

  • Leitura automática de código Mapeia dependências entre funções e infere o sentido de variáveis ou estruturas a partir do contexto.

  • Apoio à conversão entre linguagens Gera rascunhos de migração — de COBOL para Java, de VB para Python — que servem como ponto de partida.

  • Refatoração semi-automatizada Organiza lógicas emaranhadas em funções, gera testes e aproxima o código de um estado manuseável para equipes futuras.

Em resumo, tudo o que permanece em forma de código pode ser “descongelado” com ajuda da IA. Por isso a IA generativa tem potencial para se tornar uma virada de jogo na modernização de legados baseados em código.

Isso não significa que “há código, logo está salvo”. Se o ambiente de execução já desapareceu ou se ninguém mais conhece o domínio de negócio, ainda restarão lacunas que a IA não preenche. Mesmo assim, as chances de recuperação são muito maiores do que quando sobra apenas uma caixa-preta.


O que não dá para salvar──ativos que nunca viraram código

E quanto aos ativos criados em no-code ou RPA?

Eles existem como operações em interfaces gráficas ou como fluxogramas, com representações internas presas a formatos proprietários de cada fornecedor. A IA generativa é excelente em lidar com texto, mas arquivos proprietários ou cifrados permanecem opacos.

Um “fluxo” de RPA pode parecer um diagrama de blocos, mas na prática costuma ser um pacote de projeto cifrado. Os “aplicativos” no-code rodam apenas na nuvem do fornecedor e não foram pensados para exportar código-fonte.

Na prática, reconstruir costuma ser mais rápido do que tentar resgatar. Talvez pesquisas futuras consigam inferir fluxos a partir de gravações ou capturas de tela, mas hoje é inviável herdar diretamente um ativo que se tornou caixa-preta.


Linha divisória da dívida negativa──ficou ou não em forma de código

Daqui emerge o divisor de águas do passivo que chegará ao futuro.

  • O que foi preservado como código ganha, graças à IA generativa, caminhos para reutilização, migração ou melhoria.
  • O que nunca virou código continua invisível para a IA em vários pontos, restando apenas redesenhar.

Ou seja, a possibilidade de resgate futuro depende de “ele ficou registrado como código?”. A IA generativa deixou essa fronteira ainda mais nítida.


Perspectiva──a IA não é uma salvadora onipotente

A IA generativa é poderosa, mas está longe de ser onipotente. Ela não consegue resgatar totalmente ativos de desenvolvimento cidadão que viraram caixas-pretas, nem justificar decisões antigas.

O que ela escancara é o custo da “liberdade de não escrever código”. Organizações seduzidas pelo ganho imediato do no-code descobrirão que a IA não oferece linha de vida e terão de assumir por conta própria o custo do redesenho.

Por isso, na próxima parte vamos explorar como evitar a produção de passivos negativos — a partir do desenho de governança.


Próximo: O desenvolvimento cidadão não é onipotente — é um “desenvolvimento em rascunho” 5/7